O “Porto Canal”, a estação de televisão que mais se aproxima
do meu conceito de projecto para a informação privilegiada de um clube, mostra
como o FC Porto contornou certas tentações, de que o canal Benfica TV é o
exemplo acabado com o apanágio da chicana e do insulto. E isso faz toda a
diferença!
Se me disserem que a Benfica TV, entretanto, inverteu este
rumo desde que deixei de vê-la, então considero o que escrevi como mero registo
histórico, removendo-o do presente.
É óbvio que o aberrante, por vezes, pode divertir-nos. A
mais execrável conduta pode lançar-nos um sorriso no olhar. Temos esta
particularidade de rir – ou sorrir – de tudo aquilo que, ainda que sórdido ou
dramático, só pode ser visto à luz da caricatura. Eu próprio gozei imenso com
aquela invenção pré-histórica de “transmitir” os jogos do Benfica com círculos
num tabuleiro, que se mexiam, alegadamente mostrando o desenrolar do jogo que
corria ao lado, na SportTV ou num canal generalista. Burlesco, no mínimo, como
burlescos se tornavam alguns lugares comuns do insulto ao FC Porto, durante
essas transmissões, mesmo quando o adversário não era o Dragão.
Será, aliás, difícil, para mim e para muitos que se pautam
por outros valores que não os da Benfica TV, esquecer aquele comentário infeliz
de que Pinto da Costa, para bem de todos, já deveria estar a festejar o título
que o FC Porto acabara de conquistar (suponho que com Vilas Boas) junto do seu
amigo Pôncio Monteiro, que tinha falecido meses antes.
Se um dia a televisão do meu clube enveredar por aí,
confesso que não sei o que serei capaz de escrever perante tamanha desilusão.
Mas não era sobre isto que queria escrever. Vim aqui para escrever
sobre mística, e como ela se constrói.
Júlio Magalhães introduziu na grelha da estação uma espécie
de talk-show, chamado “Dupla
improvável”, onde, com Paulo Futre, vai brincando ao entretenimento de uma
forma interessante e descomprometida.
No último, foram convidados Laureta (o Lau) e Quim
(Vitorino) e falou-se, como era de esperar, da final de Viena, que Laureta
falhou por se ter lesionado gravemente num treino. Mas falou-se de muito mais.
Sobretudo de mística.
Ficámos a saber, por exemplo, que André e Quim eram os
testas-de-ferro a quem incumbia defender o “menino” Futre das investidas às
suas pernas por parte dos defesas adversários. E podemos imaginar essas cenas,
sobretudo aqueles que não assistiram a tantos desses episódios porque ainda não
havia televisão omnipresente nos campos de futebol. Eu assisti a muitíssimas delas,
in loco, felizmente. André era, de
facto, o jogador que, dentro do campo, ninguém queria ter como inimigo. Nem o
José Pratas…
Mas ficámos também a saber dos sempre falados, mas nunca
decifrados, mistérios dos “almoços de sexta-feira”, onde só entrava a task force do plantel, os portadores da
mística. Para entrar nesse restrito escol, os mais novos tinham de merecer,
lutar arduamente por um lugar à mesa. E o que eles corriam e lutavam para
merecerem o convite… Era a mística em
avaliação contínua!
À distância do tempo, se relembrarmos a constituição do
plantel portista de então, poderemos extrapolar sobre alguns dos temas
discutidos nesses almoços.
Há quem diga (e eu trago-o aqui porque conheci algum do
trabalho de casa que os jogadores tinham) que um dos assuntos principais era o “relatório”
sobre o árbitro do jogo seguinte: os seus medos, as suas virtudes e defeitos,
aquilo a que era sensível no “relacionamento” físico com os adversários, os
limites da contestação, as simpatias clubistas… Como se deslocava em campo (Sim.
Já sei que algumas almas mal intencionadas estarão a pensar: ai os gajos… agora
percebo por que algumas faltas passavam em branco… eles sabiam que o árbitro,
em princípio, não veria). E qual o atleta escolhido para se dirigir ao árbitro
quando fosse necessário impor-se alguma pressão. Só quando se tratava de José
Pratas não se procedia a essa escolha, desse tratava – e bem – André!
Ficámos a saber que também se discutia a forma como Futre
tinha de ser preservado fisicamente para poder manter, durante todo o jogo, os
célebres “piques” que incendiavam a alma azul-e-branca e semeavam o pânico no
adversário. Cabia a Quim “cobrir” as subidas de Laureta (o tal que mantinha,
permanentemente, por cicatrizar a face externa dos membros inferiores, em nome
da raça com que sempre entrava em todo o lado esquerdo da equipa portista,
lavrando o relvado com próprio sangue – pode parecer exagerado, eu sei, mas não
me coibi de laurear essa estirpe de defesa esquerdo, com alguns seguidores no
clube), porque Futre estava “proibido” de vir atrás. Ele que fizesse o que
sabia, e os outros, os do meio-campo, lá estariam para cobrir a retaguarda.
Claro que não se falou, por exemplo, do mito da mão de Quim a
ajeitar a bola sempre que Celso cobrava um livre. Se não o fizesse, certo e
sabido que Celso falhava!!! Agora, imaginem uma falta cometida sobre o Quim, o
Quim não podia ser assistido sem que antes desse o abençoado toque na bola
porque teria de sair do campo depois de assistido e solicitar a reentrada. Não
dava tempo!
Deste programa e da restante informação do clube nesta
estação se infere que um canal de televisão ligado a um clube pode defender os
seus valores, revelar alguns dos seus segredos e algumas das suas estórias, guardados
pela história, sem entrar pelo caminho ignominioso do insulto soez contra os
adversários, sobretudo os mais directos.
Foi bom estarmos ali uma horita a ouvir falar do clube, sem
uma única referência ao Benfica!
E, mesmo nos jogos da equipa B, que o “Porto Canal”
transmite quando realizados no estádio de Grijó, ao colocar Bernardino Barros à
cabeça dos comentários, a estação andou bem, prova de que se pode ser isento e
ter lisura numa informação com matriz clubista. Bernardino Barros, com todo o
peso do seu trajecto de jornalista desportivo, é o garante dessa isenção e
dessa lisura. Se têm dúvidas, oiçam-no!
Júlio Magalhães, o regressado “Juca”, que preferiu recolher
a casa e às origens para liderar este processo de entrada do FC Porto no mundo
da televisão própria, mas com programação generalista e independente, vai por
certo continuar a defender este aspecto, o único que serve a um clube que não
quer um canal para guerrinhas de Alecrim e Manjerona ou para sublimar
provincianismos: quer um canal para construir uma imagem (supra-)nacional dos
valores de um clube que soube crescer, emancipar-se, e que, finalmente, quer
vender a sua marca num estádio superior ao dos adversários. A liderança tem de
ser integrada, cada vez em mais áreas de intervenção. Defender o que é nosso
tem sempre um preço elevado. Demasiado caro para perder tempo com rastos
menores de exacerbações que a nada conduzem, a não ser ao ridículo.
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