segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A grosseira inconstitucionalidade da tributação sobre pensões - António Bagão Félix




Aprovado o OE 2013, Portugal arrisca-se a entrar no "Guinness Fiscal"por força de um muito provavelmente caso único no planeta: a partir de um certo valor (1350 euros mensais), os pensionistas vão passar apagar mais impostos do que outro qualquer tipo de rendimento, incluindo o de um salário de igual montante! Um atropelo fiscal inconstitucional, pois que o imposto pessoal é progressivo em função dos rendimentos do agregado familiar [art.º 104.º da CRP], mas não em função da situação activa ou inactiva do sujeito passivo e uma grosseira violação do princípio da igualdade [art.º 13.º da CRP].

Por exemplo, um reformado com uma pensão mensal de 2200 euros pagará mais 1045 € de impostos do que se estivesse a trabalhar com igual salário (já agora, em termos comparativos com 2009, este pensionistaviu aumentado em 90% o montante dos seus impostos e taxas!).

Tudo isto por causa de uma falaciosamente denominada "contribuição extraordinária de solidariedade" (CES), que começa em 3,5% e pode chegar aos 50%. Um tributo que incidirá exclusivamente sobre as pensões. Da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações. Públicas e privadas. Obrigatórias ou resultantes de poupanças voluntárias. De base contributiva ou não, tratando-se por igual as que resultam de muitos e longos descontos e as que, sem esse esforço contributivo, advêm de bónus ou remunerações indirectas e diferidas.

Nas pensões, o Governo resolveu que tudo o que mexe leva! Indiscriminadamente. Mesmo - como é o caso - que não esteja previstono memorando da troika.

Esta obsessão pelos reformados assume, nalguns casos, situações grotescas, para não lhes chamar outra coisa. Por exemplo, há poucos anos, a Segurança Social disponibilizou a oferta dos chamados "certificados de reforma" que dão origem a pensões complementares públicas para quem livremente tenha optado por descontar mais 2% ou 4% do seu salário. Com a CES, o Governo decide fazer incidir mais impostos sobre esta poupança do que sobre outra qualquer opção de aforro que as pessoas pudessem fazer com o mesmo valor... Ou seja, o Estado incentiva a procura de um regime público de capitalização (sublinho, público) e logo a seguir dá-lhe o golpe mortal. Noutros casos, trata-se - não há outra maneira de o dizer - de um desvio de fundos através de uma lei: refiro-me às prestações que resultam de planos de pensões contributivos em que já estão actuarialmente assegurados os activos que caucionam as responsabilidades com o sbeneficiários. Neste caso, o que se está a tributar é um valor que já pertence ao beneficiário, embora este o esteja a receber diferidament eao longo da sua vida restante. Ora, o que vai acontecer é o desplante legal de parte desses valores serem transferidos (desviados), através da dita CES, para a Caixa Geral de Aposentações ou para o Instituto de Gestão Financeira da S. Social! O curioso é que, nos planos de pensões com a opção pelo pagamento da totalidade do montante capitalizado em vez de uma renda ou pensão ao longo do tempo, quem resolveu confiar recebendo prudente e mensalmente o valor a que tem direito verá a sua escolha ser penalizada.

Um castigo acrescido para quem poupa.

Haverá casos em que a soma de todos os tributos numa cascata sem decoro (IRS com novos escalões, sobretaxa de 3,5%, taxa adicional de solidariedade de 2,5% em IRS, contribuição extraordinária de solidariedade (CES), suspensão de 9/10 de um dos subsídios que começa gradualmente por ser aplicado a partir de 600 euros de pensão mensal!) poderá representar uma taxa marginal de impostos de cerca de 80%! Um cataclismo tributário que só atinge reformados e não rendimentos detrabalho, de capital ou de outra qualquer natureza! Sendo confiscatório, é também claramente inconstitucional.

Aliás, a própria CES não é uma contribuição. É pura e simplesmente um imposto. Chamar-lhe contribuição é um ardil mentiroso. Uma contribuição ou taxa pressupõe uma contrapartida, tem uma natureza sinalagmática ou comutativa. Por isso, está ferida de uma outra inconstitucionalidade. É que o já citado art.º 104.º da CRP diz que oimposto sobre o rendimento pessoal é único.

Estranhamente, os partidos e as forças sindicais secundarizaram ou omitiram esta situação de flagrante iniquidade. Por um lado, porque acham que lhes fica mal defender reformados ou pensionistas desde que as suas pensões (ainda que contributivas) ultrapassem o limiar da pobreza. Por outro, porque tem a ver com pessoas que já não fazem greves, não agitam os media, não têm lobbies organizados.

Pela mesma lógica, quando se fala em redução da despesa pública há uma concentração da discussão sempre em torno da sustentabilidade do Estado social (como se tudo o resto fosse auto-sustentável...). Porque, afinal, os seus beneficiários são os velhos, os desempregados,os doentes, os pobres, os inválidos, os deficientes... os que não têm voz nem fazem grandiosas manifestações. E porque aqui não há embaraços ou condicionantes como há com parcerias público-privadas, escritórios de advogados, banqueiros, grupos de pressão, estivadores. É fácil ser corajoso com quem não se pode defender.

Foi lamentável que os deputados da maioria (na qual votei) tenham deixado passar normas fiscais deste jaez mais próprias de um socialismo fiscal absoluto e produto de obsessão fundamentalista, insensibilidade, descontextualização social e estrita visão de curto prazo do ministro das Finanças. E pena é que também o ministro da Segurança Social não tenha dito uma palavra sobre tudo isto, permitindo a consagração de uma medida que prejudica seriamente uma visão estratégica para o futuro da Segurança Social. Quem vai a partirde agora acreditar na bondade de regimes complementares ou da introdução do "plafonamento", depois de ter sido ferida de morte a confiança como sua base indissociável? Confiança que agora é violada grosseiramente por ditames fiscais aos ziguezagues sem consistência, alterando pelo abuso do poder as regras de jogo e defraudand irreversivelmente expectativas legitimamente construídas com esforço e renúncia ao consumo.

Depois da abortada tentativa de destruir o contributivismo com o aumento da TSU em 7%, eis nova tentativa de o fazer por via desta nova avalanche fiscal. E logo agora, num tempo em que o Governo diz querer"refundar" o Estado Social, certamente pensando (?) numa cultura previdencial de partilha de riscos que complemente a protecção pública. Não há rumo, tudo é medido pela única bitola de mais e mais impostos de um Estado insaciável.

Há ainda outro efeito colateral que não pode ser ignorado, antes deve ser prevenido: é que foram oferecidos poderosos argumentos para"legitimar" a evasão contributiva no financiamento das pensões.

"Afinal, contribuir para quê?", dirão os mais afoitos e atentos.

Este é mais um resultado de uma política de receitas "custe o que custar" e não de uma política fiscal com pés e cabeça. Um abuso de poder sobre pessoas quase tratadas como párias e que, na sua larga maioria, já não têm qualquer possibilidade de reverter a situação. Uma vergonha imprópria de um Estado de Direito. Um grosseiro conjunto de inconstitucionalidades que pode e deve ser endereçado ao Tribunal Constitucional.

PS1: Com a antecipação em "cima da hora" da passagem da idade deaposentação dos 64 para os 65 anos na função pública já em 2013 (até agora prevista para 2014), o Governo evidencia uma enorme falta derespeito pela vida das pessoas. Basta imaginar alguém que completa 64 anos em Janeiro do próximo ano e que preparou a sua vida pessoal e familiar para se aposentar nessa altura. No dia 31 de Dezembro, o Estado, através do OE, vai dizer-lhe que, afinal, não pode aposentar-se. Ou melhor, em alguns casos até poderá fazê-lo, só que com penalização, que é, de facto, o que cinicamente se pretende com a alteração da lei. Uma esperteza que fica mal a um Governo que se quer dar ao respeito.

PS2: Noutro ponto, não posso deixar de relevar uma anedota fiscal para2013: uma larga maioria das famílias da classe média tornadas fiscalmente ricas pelos novos escalões do IRS não poderá deduzir umcêntimo que seja de despesas com saúde (que não escolhem,evidentemente). Mas, por estimada consideração fiscal, poderão deduziruns míseros euros pelo IVA relativo à saúde... dos seus automóveis pago às oficinas e à saúde... capilar nos cabeleireiros. É comovente...

PUB 28-11-12 Por António Bagão Félix

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Porto Canal e mística portista





O “Porto Canal”, a estação de televisão que mais se aproxima do meu conceito de projecto para a informação privilegiada de um clube, mostra como o FC Porto contornou certas tentações, de que o canal Benfica TV é o exemplo acabado com o apanágio da chicana e do insulto. E isso faz toda a diferença!
Se me disserem que a Benfica TV, entretanto, inverteu este rumo desde que deixei de vê-la, então considero o que escrevi como mero registo histórico, removendo-o do presente.

É óbvio que o aberrante, por vezes, pode divertir-nos. A mais execrável conduta pode lançar-nos um sorriso no olhar. Temos esta particularidade de rir – ou sorrir – de tudo aquilo que, ainda que sórdido ou dramático, só pode ser visto à luz da caricatura. Eu próprio gozei imenso com aquela invenção pré-histórica de “transmitir” os jogos do Benfica com círculos num tabuleiro, que se mexiam, alegadamente mostrando o desenrolar do jogo que corria ao lado, na SportTV ou num canal generalista. Burlesco, no mínimo, como burlescos se tornavam alguns lugares comuns do insulto ao FC Porto, durante essas transmissões, mesmo quando o adversário não era o Dragão.

Será, aliás, difícil, para mim e para muitos que se pautam por outros valores que não os da Benfica TV, esquecer aquele comentário infeliz de que Pinto da Costa, para bem de todos, já deveria estar a festejar o título que o FC Porto acabara de conquistar (suponho que com Vilas Boas) junto do seu amigo Pôncio Monteiro, que tinha falecido meses antes.

Se um dia a televisão do meu clube enveredar por aí, confesso que não sei o que serei capaz de escrever perante tamanha desilusão.

Mas não era sobre isto que queria escrever. Vim aqui para escrever sobre mística, e como ela se constrói.

Júlio Magalhães introduziu na grelha da estação uma espécie de talk-show, chamado “Dupla improvável”, onde, com Paulo Futre, vai brincando ao entretenimento de uma forma interessante e descomprometida.
No último, foram convidados Laureta (o Lau) e Quim (Vitorino) e falou-se, como era de esperar, da final de Viena, que Laureta falhou por se ter lesionado gravemente num treino. Mas falou-se de muito mais. Sobretudo de mística.
Ficámos a saber, por exemplo, que André e Quim eram os testas-de-ferro a quem incumbia defender o “menino” Futre das investidas às suas pernas por parte dos defesas adversários. E podemos imaginar essas cenas, sobretudo aqueles que não assistiram a tantos desses episódios porque ainda não havia televisão omnipresente nos campos de futebol. Eu assisti a muitíssimas delas, in loco, felizmente. André era, de facto, o jogador que, dentro do campo, ninguém queria ter como inimigo. Nem o José Pratas…

Mas ficámos também a saber dos sempre falados, mas nunca decifrados, mistérios dos “almoços de sexta-feira”, onde só entrava a task force do plantel, os portadores da mística. Para entrar nesse restrito escol, os mais novos tinham de merecer, lutar arduamente por um lugar à mesa. E o que eles corriam e lutavam para merecerem o convite… Era a mística em avaliação contínua!

À distância do tempo, se relembrarmos a constituição do plantel portista de então, poderemos extrapolar sobre alguns dos temas discutidos nesses almoços.

Há quem diga (e eu trago-o aqui porque conheci algum do trabalho de casa que os jogadores tinham) que um dos assuntos principais era o “relatório” sobre o árbitro do jogo seguinte: os seus medos, as suas virtudes e defeitos, aquilo a que era sensível no “relacionamento” físico com os adversários, os limites da contestação, as simpatias clubistas… Como se deslocava em campo (Sim. Já sei que algumas almas mal intencionadas estarão a pensar: ai os gajos… agora percebo por que algumas faltas passavam em branco… eles sabiam que o árbitro, em princípio, não veria). E qual o atleta escolhido para se dirigir ao árbitro quando fosse necessário impor-se alguma pressão. Só quando se tratava de José Pratas não se procedia a essa escolha, desse tratava – e bem – André!

Ficámos a saber que também se discutia a forma como Futre tinha de ser preservado fisicamente para poder manter, durante todo o jogo, os célebres “piques” que incendiavam a alma azul-e-branca e semeavam o pânico no adversário. Cabia a Quim “cobrir” as subidas de Laureta (o tal que mantinha, permanentemente, por cicatrizar a face externa dos membros inferiores, em nome da raça com que sempre entrava em todo o lado esquerdo da equipa portista, lavrando o relvado com próprio sangue – pode parecer exagerado, eu sei, mas não me coibi de laurear essa estirpe de defesa esquerdo, com alguns seguidores no clube), porque Futre estava “proibido” de vir atrás. Ele que fizesse o que sabia, e os outros, os do meio-campo, lá estariam para cobrir a retaguarda.

Claro que não se falou, por exemplo, do mito da mão de Quim a ajeitar a bola sempre que Celso cobrava um livre. Se não o fizesse, certo e sabido que Celso falhava!!! Agora, imaginem uma falta cometida sobre o Quim, o Quim não podia ser assistido sem que antes desse o abençoado toque na bola porque teria de sair do campo depois de assistido e solicitar a reentrada. Não dava tempo!

Deste programa e da restante informação do clube nesta estação se infere que um canal de televisão ligado a um clube pode defender os seus valores, revelar alguns dos seus segredos e algumas das suas estórias, guardados pela história, sem entrar pelo caminho ignominioso do insulto soez contra os adversários, sobretudo os mais directos.

Foi bom estarmos ali uma horita a ouvir falar do clube, sem uma única referência ao Benfica!

E, mesmo nos jogos da equipa B, que o “Porto Canal” transmite quando realizados no estádio de Grijó, ao colocar Bernardino Barros à cabeça dos comentários, a estação andou bem, prova de que se pode ser isento e ter lisura numa informação com matriz clubista. Bernardino Barros, com todo o peso do seu trajecto de jornalista desportivo, é o garante dessa isenção e dessa lisura. Se têm dúvidas, oiçam-no!

Júlio Magalhães, o regressado “Juca”, que preferiu recolher a casa e às origens para liderar este processo de entrada do FC Porto no mundo da televisão própria, mas com programação generalista e independente, vai por certo continuar a defender este aspecto, o único que serve a um clube que não quer um canal para guerrinhas de Alecrim e Manjerona ou para sublimar provincianismos: quer um canal para construir uma imagem (supra-)nacional dos valores de um clube que soube crescer, emancipar-se, e que, finalmente, quer vender a sua marca num estádio superior ao dos adversários. A liderança tem de ser integrada, cada vez em mais áreas de intervenção. Defender o que é nosso tem sempre um preço elevado. Demasiado caro para perder tempo com rastos menores de exacerbações que a nada conduzem, a não ser ao ridículo.