Na galeria dos inesquecíveis
09.08.2009, Mário Zambujal
A meio da manhã, ligou-me o António Macedo, da Antena 1, com a voz tensa e a notícia de um rumor: constava que tinha morrido o Raul Solnado. Perturbado e um tanto incrédulo, dado que os nossos últimos encontros não pressagiavam tão brutal novidade, procurei informações junto de um amigo comum que o acompanhava sempre: o Manolo Bello. Era verdade. Duas horas antes destas amargas conversas, perdêramos do nosso convívio um homem raro, alguém que não fazia apenas parte de um círculo de amigos mas da existência dos portugueses todos. E nessa manhã negra de ontem, em homenagem à memória do Raul, tomei dois whiskies como tantas vezes fizemos juntos. E entristeci.
Não sei se volto a ter explosões de riso como as que me proporcionou o Raul nas noitadas livres de regras e conveniências em que contávamos anedotas e falávamos muito de mulheres e de pândegas. Nestes últimos anos, já não resistíamos a rememorar peripécias antigas e ríamos assim, em diferido, de episódios castiços de épocas vividas. E sei, sim, que Portugal empobreceu ao perder um cidadão invulgar, não apenas pelo talento do artista, como pelo carácter que o colocava ao lado das causas boas. Ele era aquilo que considero um intelectual de verdade: não apenas um erudito acumulador de ideias alheias mas um criativo leitor nas páginas da vida.
Por mais que a sensatez nos precate para a inevitabilidade da morte, e por muito que um tipo da minha geração se vá habituando à chamada para velórios e funerais, a notícia deste sábado de Agosto deixou-me a sensação terrível de que todos nós morremos um pouco. Não só quem teve o privilégio de o ter por perto. A profunda empatia entre o Raul e essa entidade vasta e contraditória a que chamamos "público" faz deste dia o luto não só familiar e dos amigos próximos, mas de um povo. Ele divertiu Portugal, que sempre precisou de quem o tirasse do sério e da sisudez. Mas o Raul, como bem provou quando chamado a outros "papéis" que não o de irresistível comediante, mostrou-se como o artista total, tão capaz da comédia como do drama, tão sagaz despertador do riso como intérprete de personagens díspares.
O que me consola a alma, neste momento desolado, é a certeza de que o Raul não deixa um vazio. Ele manterá o seu lugar no palco das artes e dos afectos e há-de pertencer a todas as gerações. Se me fosse permitido mandar agora um recado ao Raul, eu diria: "Quando chegar a minha vez, quero um lugar junto de ti. Muito nos havemos de rir". (Depoimento recolhido por Paula Torres de Carvalho)
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