segunda-feira, 8 de junho de 2009

O rapaz tímido da mesa do canto que come maçãs

Lembrei-me, de repente, que, durante toda a minha vida, eu fui sempre o rapaz tímido da mesa do canto. Dos cafés do bairro. Dos lugares. Aquele a quem todos dizem um olá, por dizer, porque está lá todos os dias. Aquele a quem alguns dão os bons dias, porque, raios, o rapaz é solícito mas fala tão pouco.

Certos dos habituais ficam um pouco, a mão nas costas, trocando banalidades, mas, que diabo, ele sabe de tudo um pouco, conhece os sonhos em várias línguas, corta em pedaços os lugares que visitou para dar um bocadinho a todos e tudo em cores de ilusão, é ou não é do nosso clube. Se é da nossa cor, é bom ouvi-lo, mas, se não, é melhor nem começar cavaqueira sobre o assunto… descai-lhe a verdade para os lados da Areosa e vem por ali abaixo um discurso de pressupostos, de argumentos, de gozo, de lábia perfeita, que é bom, mesmo, nem entrarmos por aí.

Fundamentalista!
Clubista!
Panfletário!

Mas também há quem repare que tem sempre um livro consigo (embora a maioria só consiga observar que na sua frente, conforme a hora do dia, está sempre uma chávena de café ou uma garrafa de água com gás, que podem, contudo, estar juntas se alguma das refeições do dia meteu excesso). Os livros vêm das mais variadas terras: podem ser modernos e luzirem ou terem capas rotas de couro velho, velho. Podem contar histórias ou, simplesmente, imprimir versos. Terem a força do tempo ou o sorriso da ligeireza. Rirem-se em capas coloridas ou serem austeros como missais de vésperas conventuais. Podem ter nome de Vénus ou de madre Teresa. Ler mundos ou disfarçar incertezas da mente. Dizer a vida de cavaleiros andantes ou de Maquiavéis.

Todas as pessoas que entram merecem-lhe um olhar personalizado, na intensidade e na altura. À altura das pernas, das ancas, da cintura, do peito, do olhar. Cada lugar de cada vez ou tudo à molhada. Mas sempre personalizado, com sinete sobre o lacre dos códigos, com código de barras onde impere – expressamente - a qualidade, que o rapaz desde sempre foi de rituais. Como corpo ou como devaneio estético. Sexuado ou sem conotação. Mais decote de camisola curta, saia justa. Ou naco de Olimpo pendurado nestes pedaços de viver. Mas há sempre uma pessoa diferente no seu olhar. Aquela! Não é sempre a mesma, muda no tempo. É sempre – tem de ser – especial. Não pode ser de grandes conversas com muita gente. Mais de 30 segundos numa mesa têm de ser tempo de mais. Tem de ter em si um furacão de vida, um vulcão no andar, a elegância de uma gazela em flor, a leveza de um açor (sim, tem de ser de fibra, cravar o olhar no seu e ficar, apertar as suas garras na sua pele e deixar, tem de permitir marcas das suas asas na alma castigada do rapaz da mesa do canto), tem de ter a graça e o ar vivo de um antílope na savana de perigos que é a carreira fora do bairro. Tem de ter autoridade mas não subjugar. Profundidade pode ter sem limites que as raias do rapaz tímido não têm marcos. Tem de ser inteligente e simples. Capaz de banalidades (uma de quando em vez para dizer que não é monja) mas muito mais capaz de dizer com um gesto, um toque. Sim, subtileza é condição necessária. Capacidade para amar o possível e os impossíveis. Tem de trazer certificado de ternura. Ser de afectos límpidos.

Mas… existe tudo isso num só pacote? Pergunta-se tantas vezes o rapaz tímido da mesa do canto quando prefere as horas sem clientes e o empregado dormita o choro nocturno do bebé a meias com a mulher que bate bolos na pastelaria em frente. Sempre pensa que sim. Tem, aliás, a certeza. Alguns chamam-lhe alma gémea. Autores que sabem o que dizem e paspalhos que não sabem o que querem Todos, como se fossem especialistas. Quando pensa que sim e executa o pensamento, desaparece. Vemo-lo passear à beira-mar, absorto no coração, olhando para dentro com ar feliz. Olha o relógio, esperando. Atende o telemóvel, apressado. Depois, muda-se! Dizem que partiu com ela. Criaram um ninho. Emagrece. Canta. Põe gravata na aura (pois, ele veste tão simples e tão barato, normalmente; nunca se entende como esse desprendimento contrasta tão ferozmente com os relógios que têm de ser de marca e as canetas que têm de ter história). Corta o cabelo de meses e meses (mas limpo, sempre com perfume a carácter e asseio). Fica com menos, quantos, cinco, seis anos? A sua vida passa a ser feita a correr. Com aquela vontade de quem quer alcançar, depressa, a felicidade toda como se a felicidade não fosse, apenas, a soma de momentos felizes, ditosos, satisfeitos. Conforme a idade da eleita (ou de quem o elegeu, que nesta coisa do amor e da paixão não há ordem preestabelecida de chegada ou partida) muda a literatura, a música, até o sorriso. Mas nunca a linguagem, o que, por vezes, se constitui em barreira. Mas há quem entre e fique para sempre!

Sim, ele tem – já - a sua fixação imortal. Dir-se-ia que é a alma gémea. Quase só fala com ela longe dos outros, em privado. Atrever-me-ia a dizer que ele considera que até nem lhe falta a fragilidade feminina que ele gosta de proteger. Tem, efectivamente, quase tudo. É completa. Dir-se- ia quase perfeita! Quando saem, de muito longe em cada vez mais longe, saltam labaredas, há fios condutores, química (física, nunca se saberá se existiu, existe ou existirá, que isso é um pormenor tão íntimo que nem é bom passar perto do cofre onde estão guardadas as respostas), partilha, palavras de fantasia. O céu abre-se em cada esquina. O sol brilha nem que sejam duas da manhã. Depois, vem a realidade. Cada vez mais amiúde, sempre tímido, sempre para a mesa do canto, agora com uma pen minúscula no porta-chaves, mas os livros de sempre. De momento todos o ouvem com Gundersen pela mão, Garbarek em sax de companhia, faz colecção de vídeos musicais no youtube, Grappelli, flauta, ainda mais violinos, ainda mais jazz. Mas as sombras de quase sempre (os interlúdios disfarçam-nas, eu sei) continuam lá. Há mais umas rugas – de velhice? De expressão? – que lhe toldam o sorriso.

Senta-se. O café. As águas. O olhar já não personaliza. É intemporal. Alguém repararia que é alheio! O brilho precisa de ser areado porque embaçou de lágrimas constantes os olhos do rapaz tímido. Na mesa do canto. Deixou de se esquecer dos óculos de sol. Não para se esconder, para esconder-se. Tomou a bica (a bica, não, o cimbalino…) devagar no absorto das ideias. Tirou um guardanapo, limpou o resto do creme. Tirou outro e começou a escrever. O empregado reparou que começava por… para quê a revelação? Ele é um empregado de café de bairro à moda antiga. Logo, ao deitar, a patroa saberá. Ela que lhe dê o uso que entender…

“ Encontrei, tenho a certeza,
a minha alma gémea.
Ontem deixei-me perdê-la.
Mas quantos podem dizer:
eu encontrei a minha alma gémea?

… Digo-te adeus
Como quem não sabe
O caminho de regresso
Porque as estrelas
Se apagaram uma a uma.
Despeço-me no pranto
De quem mergulha
E da solidão faz sua casa.
Renuncio-me na inexistência
Porque não há mais caminhos
Para andar, cruzando o olhar
Partilhando a sorrir os afectos
Cumpridos ou por cumprir… ”

Guardou o papel no bolso dos rolinhos de papel que faz quando passeia com as mãos nos bolsos. Deixou o dinheiro sobre a mesa. Sempre contado a mais. Entrou no carro, mudou o CD, e partiu… No woman no cry do álbum Bossa n’Marley de Astrud C. e Moana… Uma das suas versões preferidas…

Entrou em casa. Sentou-se na única cadeira da mesa de centro da cozinha. Como uma ilha! Em silêncio absoluto. Pegou em três maçãs para o lixo. Nem as maçãs nos suportam já. Lembram-se quando as maçãs duravam vidas? Ou ele é que não come maçãs há tempo de mais. É, perde o apetite com as saudades e quando a vida se transforma em dorida recordação. Deita-se no sofá. No fundo de si, o grito

1 comentário:

  1. (chegando de além mar), para retribuir-te a visita e dizer que gostei de teu espaço. Preferi comentar este texto, pois pareceu-me íntimo, os políticos (ora, política é igual em qualquer lugar) - nós é costumamos achar que um dia mudarão - senão, algumas coisas perderiam o sentido, mon ami!
    Beijo...

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